É incrível até onde o ódio humano pode nos levar. O preconceito é uma fonte para esse ódio. Ódio esse que eu experimentei.
Hoje não consigo mais exercer a minha profissão de jardineiro, pois carrego nela um trauma, tão forte que só de relembrar essa história, e escrevê-la aqui nesta carta, todo aquele sentimento de tristeza, indignação, raiva e frustração voltam como se eu estivesse vivendo tudo aquilo de novo.
Fazem três anos desde a tormenta toda. Eu trabalhava na casa da família Terra Nova, cuidava dos jardins da casa. Sempre trabalhando de cabeça baixa, pois sempre fui tratado como servo pelo senhor José Terra Nova. O Senhor Terra Nova, como exigia ser chamado, era um homem honesto, nunca me atrasou nem um centavo de salário, mas era também um homem rude.
Um dia cuidando dos meus afazeres na casa, uma garota, de aparência jovem, muito bela, pele clara, olhos azuis, corpo de mulher e de um caminhar suave, põe-se a minha frente e me pede uma rosa, dizia amar as flores e assim durante poucos minutos partilhamos conhecimentos sobre as flores e seus perfumes. Por mais que eu procurasse, na minha mente, nenhuma flor igualava o perfume da bela jovem. Sua voz era suave, falava com elegância e muita simplicidade no vocabulário, se fazendo entender a todo momento da breve conversa.
Os dias se passam, e a garota me visitara em todos eles. Durante as sempre breves conversas, descubro um pouco sobre a vida da pequena Clara, além de amante das flores gostava de música e de boas conversas, havia retornado da Europa onde estudara durante cinco longos anos, segundo ela. Mas o que mais me chamou a atenção foi descobrir que ela era filha do senhor Terra Nova, como podia, um homem tão bruto no trato, ter uma filha tão atenciosa e educada como a doce Clara?
Mais dias se passam, as visitas de Clara se tornam mais longas e mais íntimas, meu pequeno quarto serve de antro para o nosso amor. Nossa utopia era bem escondida e nunca haveria a possibilidade de sermos vistos juntos. Fora de lá eramos apenas funcionário e patroa, mas sempre alguns olhares nos denunciavam.
Não muito tempo se passou e o nosso amor se tornou algo tão intenso que ficou difícil esconder. A mãe de Clara, a senhora Marta Terra Nova, nos descobriu e nos alertou dizendo que se o senhor Terra Nova descobrisse não só eu perderia o meu emprego mas perderia também a minha vida.
A farsa durou pouco, Clara era impulsiva e julgava que seu pai teria de aceitar o nosso relacionamento, afinal já falávamos em casamento. Assim fizemos. Casamos e depois nos apresentamos como marido e mulher ao senhor Terra Nova. A reação dele foi a esperada, logo após darmos a notícia, ele pegou o telefone, ligou para os seus advogados e já mandou providenciar o cancelamento do nosso matrimônio. Clara ficou indignada, não acreditava no que ouvia, eu tentava acalma-la mas as minhas tentativas eram em vão. Uma discussão começava, da boca do senhor Terra Nova só ouvia palavras de puro preconceito, ele não aceitava a filha casar-se com um simples jardineiro, e que ainda por cima trabalhava para a família. Ouvi tudo quieto como sempre.
Enquanto os documentos eram providenciados para o cancelamento do matrimônio, Clara armara um plano de fuga que o fizemos com sucesso. Fomos para longe viver o nosso amor, a nossa utopia.
Nossa vida era simples, vivíamos do meu trabalho como jardineiro, agora trabalhava para outra família. Mas essa família, apesar de ser bem educada, reconheceram Clara e ligaram para o senhor Terra Nova, dando a ele o nosso paradeiro. Em pouco tempo, o senhor Terra Nova, veio a casa dos Assunção, armado de seu revolver 38 e determinado a acabar não só com o relacionamento de sua filha mas também com as chacotas das outras famílias, que riam do nome Terra Nova pois a filha do senhor José tinha fugido com o jardineiro.
Ao encontrar-nos, eu e Clara, o senhor Terra Nova levantou o braço armado, mirando disse essas palavras "Você acabou com o nome Terra Nova, não merece mais o privilégio da vida!". Um tiro se ouviu logo após os dizeres do senhor Terra Nova, mas aqueles que pensam que o tiro foi destinado a mim erram, o senhor Terra Nova atirou contra a própria filha, alegando estar curando a doideira dela.
O corpo frágil de Clara não resistiu a brutalidade do tiro, um tiro que veio não só com o projétil mas também com o ódio e com o preconceito de um pai que ama mais a imagem da família do que a própria filha.
Depois disso fugi, não vi mais a família Terra Nova. Recomecei a minha vida longe de lá. Estudei filosofia e também antropologia, mas até hoje não consigo desvendar o que passara na cabeça daquele homem para chagar a esse ponto.
O preconceito é uma realidade na nossa sociedade, resta a nós tentar combatê-lo com a principal arma que o destino nos deu, o amor.